Somos o que fazemos ou o que sentimos? | Por: Marcos de Sá

Centro Cultural Ibeu
5 min readDec 19, 2021

--

“A gente é aquilo que faz” esse ditado me fez pensar por um tempo que se tratava de uma sabedoria absoluta, partindo da ideia construída que palavras são vazias quando nossas atitudes são incoerentes a elas. A nossa cultura atual se acostumou com memes, frases em terceira pessoa sobre si mesmo, imagens retratando uma vida feliz e satisfatória, porque o ser humano, em sua grande maioria, gosta de demonstrar o sucesso e a felicidade, mesmo quando não tratam sua arrogância, frustração e debilidades. Óbvio que ninguém vai sair escrevendo coisas do tipo: “Eu sou muito arrogante e estou de saco cheio da vida” ou “Eu sou feia e detesto me olhar no espelho”, e nem acho que isso seja necessário. Todas as pessoas tem momentos agradáveis e ruins, mesmo quando focamos apenas na negatividade.

É preciso mostrar?

O desejo de “mostrar” pode trazer uma satisfação pessoal, porém temporária. Muitas pessoas não conseguem acreditar nos seus valores pessoais, ou reconhecer conquistas e fracassos, sem que isso seja mostrado. É como se essa aprovação constante dos que estão de fora fosse um mecanismo que move os sentidos da história da vida de alguém. Por exemplo, eu como escritor, gosto muito dos retornos que os leitores fazem, porque através dessa aprovação consigo analisar se o meu trabalho está alcançando os objetivos desejados, mas preciso estar aberto da mesma forma às críticas, ainda que sejam duras. E independente se são elogios ou discordâncias, o que vai definir se sou verdadeiramente um escritor é o acolhimento dos dois extremos para o meu aprimoramento. Ninguém desiste de quem é: ou aprendeu a disfarçar ou simplesmente nunca foi.

Uma ponte perigosa

As redes sociais, apesar de todos os seus benefícios, acabam se tornando uma bomba para pessoas que internamente não se definem. Acho que a famosa pergunta “Quem sou eu?” nunca pode ser totalmente respondida, pelo fato de estarmos em constantes mudanças, principalmente no que se refere a circunstâncias. Porém, essas pessoas que vivem em função do “mostrar” se convencem de que tudo o que fazem, falam, escrevem e postam são adotados como verdades oficiais do universo. E elas acatam as falsas verdades do que veem nos outros, acreditam que eles são o que mostram usando-os como referência ou alvo de competição. Conheço uma moça que vive em função de fazer intriga na vizinhança em que mora, os vizinhos sabem de sua conduta, mas nas redes sociais o que você encontra é uma personalidade doce, cheia de fé e alegria. Sem deixar de falar das indiretas na intenção de ofender alguém, que muitas vezes não está “nem aí” para o que ela está dizendo ou pensando. Consegue identificar onde o problema está escondido? Um peixe não precisa provar que sabe nadar, uma vaca não precisa provar que é capaz de produzir leite, mas os seres racionais querem provar justamente o que não são — com exceções, óbvio. Não adianta convencer de que está feliz ou que tem razão o tempo inteiro, porque ninguém é assim. Não adianta esconder fraquezas em aparências fortes, porque ninguém é assim. Convencer os outros sobre quem somos é como um vendedor que se dá bem na venda de um perfume importado, mas na verdade havia água no frasco. O golpe pode ser bem sucedido, mas não obterá sucesso em uma possível segunda vez. O que realmente somos vai ser externado naturalmente, e a nossa consciência vai confirmar “é isso que você é”.

Falar, fazer e sentir

O que a gente faz também não nos define em absoluto. Por diversas vezes fazemos o que nos dá a aparência do que não somos. Acredito que o falar e o fazer, estão ligados a fatores externos que são reconhecidos quando cumprem seu papel. Já o sentir, além de ser interno, é o que nos revela o que somos de verdade, por isso ouso afirmar que “Nós somos o que sentimos”. O sentir confronta o mostrar, porque ninguém pode tirar um raio-x dos nossos sentimentos e afirmar: “É, realmente ela está apaixonada por você” ou “Verdadeiramente você tem toda razão em tudo o que diz”. Os sentimentos por mais que nos movam externamente através de gestos, palavras e atitudes, e ainda que sejam muito verdadeiros, continuam sendo uma recâmara secreta onde só o proprietário pode visitar, organizar, e decidir o que trazer para fora. É evidente que às vezes somos enganados pelo o que sentimos, principalmente quando os nossos complexos e baixo auto estima estão no modo ON, e só o sentimento de busca pelo reconhecimento pode nos ajustar. A verdade mora no quarto onde só o proprietário pode entrar.

Sucesso em ser

Certo homem, que foi expulso de maneira humilhante do lava-jato onde trabalhava como lavador, resolveu abrir seu próprio empreendimento a fim de rebaixar a marca de seu antigo patrão. Tratou logo de conseguir dinheiro emprestado, e alugou um terreno, mandou cavar um poço, comprou material de construção e contratou ajudantes. Os juros do empréstimo quase o fizeram mendigar para manter os gastos familiares que já haviam. Tirou as filhas do colégio particular, reduziu as compras mensais, começou a ter terríveis insônias, brigava com a esposa feito um cão, mas o lava-jato “Sales Car” crescia a cada dia. O ódio pelo agora concorrente, fazia o homem investir mais e mais em marketing e melhorias no negócio, até café expresso gratuito foi implantado. Isso durou um bom tempo, até que a dívida do empréstimo acabou e as coisas pareciam que iam se estabilizar. Porém, o “Drummond Car”, onde foi humilhado, mudou-se para um bairro nobre da cidade para atender clientes de classe média e alta. O homem, revoltado, fez um novo empréstimo mesmo com o êxito de seu atual investimento. Ele não conseguia enxergar o “sucesso” naquilo. Ele só se convenceria do seu valor quando mostrasse ao antigo patrão abusivo que tinha capacidade de superá-lo. Enquanto isso, o tal de Drummond, não estava “nem aí” para o tal homem. É exatamente isso o que acontece quando vivemos em função de “mostrar” ou nos convencer do que não convenceu.

No livro O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, o aviador lamenta seu desejo de desenhar quando as pessoas grandes o desanimaram dizendo que aquilo era bobagem. Ele era um desenhista, porque isso o movia com verdade, mas permitiu que aquelas palavras enterrassem seus talentos. Nos dois casos, o lavador e o aviador, apesar de opostos foram movidos por sentimentos enganosos. Não nos cabe julgar, cada um sabe do seu percurso. Desejo uma sincera reflexão sobre o que nos move de verdade. O que mostramos ou o que sentimos? O que falamos ou o que fazemos?

Não deveríamos perder o nosso tempo com atitudes que sugam a energia, e o pior, elas não nos conduzem a lugar algum. A trajetória de alguém, por mais que tenha eventos difíceis nos percursos, não é uma competição. E se passamos a tratá-la como se fosse uma, lamento afirmar a possibilidade de estar correndo sozinho, com seus inimigos imaginários.

Marcos de Sá nasceu em Fortaleza, em 1986. Educador social e idealizador de projetos voltados à leitura, como o “Periferia que lê”, “Leitor Book Brasil” e “Prêmio Book Brasil”, Marcos é também escritor de romance contemporâneo e articulista de educação e cultura no Centro Cultural Ibeu. Seus livros de lançamento são “Reciclável — Acomode-se ou Recicle-se” e “O Baú de Shailo”. Também escreveu um livro infantil intitulado “Rotulândia”.

--

--

Centro Cultural Ibeu

Educação, cultura e arte. Uma publicação do Centro Cultural Ibeu (RJ, Brasil)