Sombras distorcidas & Pesadelos mudos — O cinema expressionista alemão | Por: Iacobus M. Blasco

Centro Cultural Ibeu
10 min readFeb 14, 2022

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Dando sequência ao artigo anterior, Movimento Expressionista, uma prolusão, primeiramente, vamos relembrar o que viria a ser o Expressionismo:

Quando capitalizado como “Expressionismo”, o termo refere-se a uma tendência artística que tornou-se popular em toda a Europa no início do século XX. Em um sentido amplamente conotativo, a arte expressionista em si possui um julgamento moral e emocional, retratada por uma percepção totalmente particular. Ela se manifesta ao espectador como uma obra desfigurada ou desconstruída. É a beleza que ultrapassa o conceito ideal de realidade e acaba se tornando disforme. O feio, segundo o movimento expressionista, não passa de uma beleza humilhada e destronada.

Masks — Emil Nolde, 1911

E esse conceito de “deformidade” viria a ser uma característica do expressionismo nas artes visuais e, principalmente, no cinema, como veremos mais adiante.

Mas, antes de tudo, é muito importante trazermos à tona algumas observações a respeito da Alemanha e sua real situação na década de 1920, para só então compreendermos a ascensão do seu cinema.

A Alemanha Pós-Guerra

A Alemanha enfrentou enormes problemas políticos, sociais e econômicos após a sua derrota na Primeira Grande Guerra. A taxa de inflação era extremamente alta: antes da guerra, 1 US$ (dólar americano) era equivalente a 4 Marcos do ouro alemão; no início de 1923, 1 US$ equivalia a 50.000 e, no final do mesmo ano, 6 bilhões de Marcos.

A moeda estava perdendo seu valor a cada dia, portanto, economizar dinheiro não adiantava, era inútil. A única opção viável para o povo alemão era gastar seu dinheiro o mais rápido possível, antes que a moeda desvalorizasse ainda mais. Curiosamente, nesse período, os alemães gastavam boa parte do seu dinheiro indo ao cinema.

UFA Film - Templehof Studios, 1920

Mesmo apesar dessa terrível situação financeira, o cinema alemão floresceu significativamente entre os anos de 1919 a 1933. O crescimento da indústria cinematográfica deveu-se a uma variedade de fatores. Em primeiro lugar, por causa da implementação de políticas isolacionistas. O governo alemão proibiu a exibição de qualquer filme estrangeiro em suas salas de cinemas a partir do início do ano de 1916 (política que veio a durar até 31 de dezembro de 1920), tudo isso devido a forte inflação na época, pois ficou muito barato exportar as produções alemãs para toda Europa e Estados Unidos, e muito caro importar os filmes estrangeiros para o país. Além disso, o próprio governo alemão, no intuito de querer melhorar a sua percepção cinematográfica junto ao seu próprio povo, aproveitou as restrições impostas e criou um enorme estúdio de cinema, a UFA.

A UFA foi fundada a 18 de Dezembro de 1917, em Berlim, como companhia de produção cinematográfica. Os meios procediam das maiores empresas alemãs do setor, nomeadamente, os estúdios Nordisk e Decla.

O Cinema Expressionista Alemão

Os filmes alemães do período são uma extensão do já mencionado expressionismo e possuem algumas características em comum.

Em primeiro lugar, a ênfase está na formação psicológica dos enredos, e na pesquisa artística detalhada das obras.

A linguagem visual desses filmes era tão avançada para sua época que simplesmente não havia necessidade de legendas para expressar o seu real conteúdo. Além disso, os personagens apresentados eram profundamente complexos e angustiados, na maioria das vezes com antecedentes freudianos.

Os filmes retratavam um mundo cinematográfico que não traduzia uma realidade parcial ou imparcial. Refletia a distorção subjetiva de personagens em crise moral ou com uma psique frenética.

Golem de Paul Wegener e Carl Boese , 1920

Imagine um mundo distópico fortemente desfigurado, expressando emoções angustiantes e doentias.

Já parou pra pensar de como poderia ser feito esse real processo de expressar tudo isso, num período em que o cinema ainda ‘engatinhava’ e nem sequer havia som?

Genialmente, uma das formas de conseguir esse magistral efeito “distorcido”, era como os diretores conduziam as produções. Na maioria das vezes, eles produziam esses filmes apenas dentro dos estúdios, optando por não filmá-los no mundo exterior.

O resultado era o controle total da captação da imagem e o estabelecimento de um ambiente cuidadosamente claustrofóbico. Sendo assim, o conjunto tornava-se também parte da ação.

Produção do cenário do filme The Cabinet of Dr. Caligari

Para conseguir tais efeitos, os diretores contrataram renomados cenógrafos e arquitetos. Profissionais gabaritados que conheciam todos os movimentos artísticos da sua época (expressionismo, cubismo, construtivismo, etc).

O ator Conrad Veidt e a atriz Lil Dagover no filme O Gabinete do Doutor Caligari , 1920

Outra forma de realizar tais produções se baseava nas atuações propositalmente exageradas dos atores, com maquiagens ‘carregadas’ e gesticulações excessivas. Eles conseguiam expressar suas emoções e seu ponto de vista nos menores movimentos e, principalmente usando a expressão de seus olhos.

Os Filmes de Terror Expressionistas

Cena do filme From Morn to Midnight, 1920. Um banqueiro busca prazer e luxúria depois de ser rejeitado por seu objeto de desejo. No entanto, ele é atormentado por visões de morte.

Todos os filmes desta categoria ocorrem no passado ou no futuro. Seu universo é fantasioso, ameaçador e macabro. Normalmente, há uma figura dominante com poderes sobrenaturais e objetivos criminosos, como por exemplo o enigmático Dr. Caligari ou o assustador vampiro Nosferatu. Outras figuras fantasiosas desse universo cinematográfico tinham a seu serviço robôs malignos, bonecas vivas, bestas mortais e seres sobrenaturais.

Os cenógrafos usavam as sua imaginações para criar os mais diversos ambientes em meio aos pesadelos mais obscuros. Eles conseguiam isso criando perspectivas não naturais, usando formas angulares ou volumes totalmente desproporcionais. Por exemplo, nos cenários, a luz do dia era pintada à mão, e utilizada dessa forma, mesmo se alguma tomada fosse gravada externamente.

Algumas obras máximas do cinema expressionista

O GABINETE DO DR. CALIGARI

O Gabinete do Dr. Caligari (1920) é o primeiro filme do movimento e o mais representativo porque possui todas as características listadas acima. Sem falar que também foi um marco na história do cinema. É uma história de horror de crime e poder sobrenatural, onde o personagem principal, o hipnotizador Dr. Caligari, comete assassinatos com a ajuda de um sonâmbulo.

Os pintores Hermann Warm, Walter Rearing e Walter Reimann foram os designers do filme. Além disso, Karl Mayer e Hans Janowitz escreveram o roteiro assustador. Mayer, em particular, foi um pilar do cinema expressionista alemão.

Sinopse: Em um pequeno vilarejo da fronteira holandesa, um misterioso hipnotizador, Dr. Caligari, chega acompanhado do sonâmbulo Cesare que, supostamente, estaria adormecido por 23 anos. À noite, Cesare perambula pela cidade, concretizando as previsões funestas do seu mestre, o Dr. Caligari.

Data de lançamento: 27 de fevereiro de 1920 (Alemanha)

Diretor: Robert Wiene

Elenco: Werner Krauss; Conrad Veidt; Friedrich Fehér; Lil Dagover; Hans Heinrich von Twardowski

Companhia(s) produtora(s): Studio Babelsberg

Duração: 71'

Gênero: filme de terror • filme mudo • thriller

Filme completo no YouTube: https://youtu.be/a4IQbHeznjw

METRÓPOLIS

Metropolis (1927) é outro ícone do cinema alemão. Fritz Lang, o diretor, cria uma cidade futurista na qual os trabalhadores atuam em enormes fábricas subterrâneas. Tudo, inclusive as casas dos subalternos, é distorcido, de modo a seguir o estilo expressionista. Uma particularidade é que essa obra tem um embelezamento excessivo (e permita-me a observação, o que é magnífico!). Fora que sua história traz a tona um fascismo latente em todos os lugares, pois o filme mostra que as pessoas são apenas uma massa invariável, e são incapazes de conduzir seus pensamentos ou de terem alguma simples ação individual (ou não, sem spoilers rs).

Sinopse: A cidade de Metrópolis é dividida em duas: de um lado estão os operários, vivendo na miséria e explorados por máquinas. Do outro, estão os políticos, que desfrutam de um jardim idílico. Uma história de amor surge entre os dois extremos da cidade.

Data de lançamento: 4 de novembro de 1927 (Brasil)

Diretor: Fritz Lang

Canção original: I. Auftakt: Metropolis Thema

Produção: Erich Pommer

Elenco: Alfred Abel; Gustav Fröhlich; Brigitte Helm; Rudolf Klein-Rogge

Gênero: Ficção científica

Filme completo no YouTube

https://youtu.be/Vnp_TAb52AI

NOSFERATU — Uma sinfonia de horror

(o meu preferido)

Nosferatu (1922) foi a única produção do gênero filmada em um cenário fora do estúdio. Para criar uma ação paranormal em um cenário “normal”, Friedrich Murnau, um dos mais ilustres realizadores deste gênero, se utiliza de meios puramente cinematográficos: o uso contínuo de contre plongée (a técnica de filmar a partir de uma grande angular), de movimentos rápidos, imagens negativas, duplicação e paragens abruptas de movimento. A luz natural, por exemplo, cria a enorme sombra de Nosferatu. Isso torna a atmosfera do filme mais assustadora e ainda mais cativante do que se fossem sombras pintadas no estúdio.

Uma coisa muito importante sobre este filme são as histórias internas. Por exemplo, os atores lêem o Livro dos Vampiros, que explica os princípios básicos do comportamento de um vampiro. Este é um detalhe essencial, já que nenhum filme de vampiros havia sido feito anteriormente.

A obra é uma versão não autorizada de um dos maiores clássicos da Literatura de todos os tempos, Drácula, de Bram Stocker. ( E pensa na viúva do autor completamente possessa, processando a produtora e mandando destruir todas as copias — que, por pura sorte, algumas restaram intactas pra alegria dos cinéfilos e apreciadores de arte de plantão).

Sinopse: O corretor de imóveis Hutter precisa vender um castelo cujo proprietário é o excêntrico conde Graf Orlock. O conde, na verdade, é um vampiro milenar que espalha o terror na região de Bremen, na Alemanha e se interessa por Ellen, a mulher de Hutter.

Data de lançamento: 15 de março de 1922 (Alemanha)

Diretor: F. W. Murnau

Adaptação de: Drácula

Elenco: Max Schreck, Gustav von Wangenheim, Greta Schröder, Alexander Granach

Lançamento: 14 de outubro de 1922

Filme completo no YouTube

https://youtu.be/SWEuP1OGx6A

OUTROS FILMES não menos importantes

  • Golem, filme de Carl Boese e Paul Wegener, é uma produção ambientada na cidade de Praga no século XVI, e traz a história de um rabino que dá a vida a um gigante de barro. Através da feitiçaria, o Golem ganha vida para proteger os judeus da cidade da perseguição.
  • Die Nibelungen é uma produção de Fritz Lang apresentada em duas partes: Morte de Siegried e Vingança de Kriemhild. Ambas foram ao ar em 1924 e são baseadas na saga homônima alemã.
  • Em Algol (1920), filme de Hans Werckmeister, um industrial cria um império graças à ajuda sobrenatural que recebe do planeta Algol.

Vale mencionar também os filmes Fausto (F. W. Murnau, 1926), A morte cansada (Fritz Lang, 1921), M. O Vampiro de Düsseldorf (Fritz Lang, 1931), The Cat and the Canary (Paul Leni, 1927), O Homem Que Ri (Paul Leni, 1928), O Gabinete das Figuras de Cera (Paul Leni e Leo Birinski, 1924), Última Gargalhada (F.W. Murnau, 1924), entre outros.

A QUEDA DO CINEMA EXPRESSIONISTA ALEMÃO

Apesar de todo ineditismo, todas essas características estilísticas e o apego obsessivo a elas acabaram por se tornar a ruína do cinema expressionista alemão. Além disso, para a contribuição desse amargo fim, muitos de seus diretores mais importantes se mudaram para Hollywood. A estética do expressionismo alemão logo influenciou todo o cinema americano da época, à medida que as ondas de imigração cresciam devido a ascensão do poder Hitler junto a Alemanha.

Os nazistas, por sua vez, consideraram posteriormente que os filmes expressionistas eram obras de arte puramente degeneradas e, sendo assim, proibiram novas produções expressionistas no país, permitindo apenas filmes estatais ultra nacionalistas que vangloriavam o nazismo.

“As mãos de Orlac”, de Robert Wiene (1924). Um pianista perde as mãos em um acidente e recebe um transplante de um serial killer. Lentamente, nosso pianista vê-se incapaz de controlar tais mãos assassinas.

A você que acompanhou o artigo até aqui, o convido desde já a dar uma chance ao cinema expressionista alemão. Comece hoje mesmo a maratonar várias dessas obras únicas, que simplesmente são a síntese do que é a verdadeira sétima arte.

Um simples artigo não é o suficiente para elucidar um movimento artístico tão importante e que se faz relevante até hoje (acredite, o cinema de terror com um tod, foi moldado a partir do cinema expressionistas alemão, e garanto que ele está mais vivo do que nunca).

Se você quiser saber mais sobre a história do cinema, vou deixar todas as fontes que usei como pesquisa para ambos os artigos que escrevi aqui para o portal Ibeu, fora que você também encontrará mais detalhes não só sobre o expressionismo alemão em si, mas também sobre o cinema de terror!

Fontes: Livros German Expressionism: Art and Society, de Wolf-Dieter Dube, e German Expressionism: The Graphic Impulse, de Peter Jelavich. Sites: Kahn Academy, Daily art Magazine portal, documentários e diversos dvds especializados, artnet.com, Wikipedia, Google, Mundo da educação.

Espero que tenha aproveitado essa jornada! Seu feedback é muito importante, tanto aqui no Medium quanto em todas as nossa redes sociais.

Obrigado pelo carinho de sua leitura e aproveito para desejar muita luz, paz e conhecimento em sua vida.

Att,

Iacobus M. Blasco

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