Solte as mãos desse assédio | Por: Marcos de Sá

Centro Cultural Ibeu
7 min readFeb 7, 2022

Sabe aquelas cenas de filmes onde a megera chuta o balde e a mocinha precisa limpar o chão novamente? Ou aquela em que o pai repete constantemente que o filho é um “fracote”? Pois é, elas existem na vida real. Na maioria das vezes, em situações sutis e nos lugares mais improváveis. Certo dia, chutando pedrinhas na rua, cheguei a uma equivocada conclusão de que, o problema estava em mim. Não era possível, que de um currículo com oito empregos diferentes, em apenas dois saí imune ao assédio moral e psicológico. “Deve ter algo de errado comigo”, pensava. Tentando encontrar a raiz de tudo.

O assédio tem uma raiz

Recordo da infância, de uma tia, que mandava eu comprar cigarros. Isso havia se tornado um costume, até que meu pai descobriu, e proibiu. Eu não sabia dizer “não”. Dizer “não” a uma tia poderia soar como um desrespeito ou afronta. Eu era menor, e não podia desapontar os adultos. No decorrer dos anos isso foi se desenvolvendo, e se tornando parte de mim. Mesmo após os vinte e poucos, era comum ouvir frases do tipo: “Você é muito burro, não sabe nem a diferença entre um cabo e um fio”, “A única coisa de útil que você tem, é a sua letra”, ou “Você não merece receber o valor que está ganhando”. Sem falar das repetidas situações de constrangimento, desrespeito com os meus esforços, e o intencional desejo de mostrar o quanto eu era “descartável”.

Os assediadores, seja no âmbito psicológico ou moral, são pessoas que permitimos que exerçam algum poder sobre nós. Tanto por questões de necessidade, quanto por fatores emocionais não tratados. Um adulto que cresceu em um lar, onde seus pais o reprovavam constantemente ou ouviu repetições do tipo “você nunca vai ser ninguém”, tem maior probabilidade de ser um eterno refém desse tipo de prática. No aspecto sexual, a vítima, na grande maioria das vezes não tem culpa, mas a sagacidade dos maus intencionados faz com que elas, muitas vezes, se sintam culpadas.

A mais recente situação que presenciei, foi um rapaz, de mais ou menos dezesseis anos, que ao tirar uma xerox para mim, imprimiu de forma incorreta. O dono do estabelecimento, observando, levantou-se da cadeira, pediu “licença” com arrogância ao garoto de olhar tímido, provavelmente um aprendiz, e resmungou na frente de outros clientes: “Não sabe nem operar uma máquina”. O rapaz, sem jeito, organizava algo no balcão que já estava organizado, talvez perdido, e sem questionar: o que me faz permanecer aqui?

Confrontando o assédio

A primeira vez que confrontei um assédio foi na época em que eu era cobrador de ônibus. O motorista, um senhor de mais ou menos cinquenta anos de idade, se aproveitando da minha personalidade inerte, passou a pedir todos os dias uma moeda de 1 real para comprar água, depois passou para 2, pra 5… mas o problema é que, na maioria das vezes, ele não me devolvia o dinheiro retirado da gaveta, o qual eu precisava repor do meu bolso. A situação foi ficando desgastante, e durante meses, sustentei a vontade de confrontá-lo. Eu sabia que a partir do momento em que eu falasse, sofreria as represálias. Foi exatamente o que aconteceu. Num certo dia, tive que pedir dinheiro emprestado a um colega, porque o da empresa ficou desfalcado pelos R$ 5 não devolvido. Enviei uma mensagem de celular, com as mãos trêmulas, como quem decide enfrentar um gigante: “Por favor, não me peça mais dinheiro. Hoje, por exemplo, eu não tinha para cobrir o da empresa”. No dia seguinte, ele jogou o dinheiro na gaveta e disse que eu não lhe dirigisse mais a palavra. No decorrer dos dias, ele passou a me humilhar com indiretas e situações constrangedoras. Alguns meses depois me trocaram de motorista, sem que eu relatasse nada, e só então consegui me livrar daquela incômoda situação.

Os assediadores, costumam se aproveitar de nossas debilidades expostas. Quando demonstramos medo, insegurança, incerteza, alimentamos o poder que eles desejam exercer sobre nós. Não adianta romantizar situações: assédio é assédio! “Ah, minha mãe diz essas coisas porque ela é mãe”, ou “Eu aceito tudo calada porque preciso desse dinheiro”. Não se engane, os assediadores, na maioria das vezes, são pessoas que acham que estão sempre certas, tem ideologias quase inquebráveis, transferem suas culpas às suas vítimas, são especialistas em encontrar maneiras de enlaçar e manipular as pessoas em suas fraquezas. Muitas vezes se fazem de vítima e justificam suas más práticas porque tem sempre um grupo ao redor que ainda baixa a cabeça diante deles. Estão sempre prontos a falarem de “ingratidão”, quando na verdade os favores oferecidos são formas de prender, e calar os supostos favorecidos.

O pior de tudo, é que muitas vezes o veneno funciona. Crianças crescem acreditando que são feias, incapazes, desajeitadas, sem graça, principalmente porque esse tipo de palavra teve uma forte influência em suas decisões diante da vida. Tornam-se adultos insatisfeitos, de sonhos engavetados, acomodados ao que for mais fácil.

Um dia, saí no meio do expediente, e me tranquei durante quase duas horas no banheiro de um shopping, chorei, mas prometi: nunca mais aceitarei passar por isso de novo. Abandonei os dois salários que recebia, não porque não precisasse, mas a saúde psicológica não podia ser mais vendida.

O problema não é você

Precisamos voltar às raízes do assédio para arrancá-lo de vez. Acredite: o problema não é você. Não há nada demais em ter dificuldade em aprender algumas coisas; em ter muitas espinhas no rosto; por não conseguir falar bonito em público; por ultrapassar os 90 quilos; por não ter cursado uma faculdade; por ainda estar solteira aos trinta anos; por cometer erros, por não bater a meta ou porque o último investimento deu errado. Nada disso dá o direito a alguém de constranger, humilhar, comparar ou diminuir você. E nem você mesmo deveria fazer isso!

Se tem uma coisa que deve ser urgentemente desligada: é o poder da voz e da ação que o assédio exerce sobre você.

Não há justificativas

Já ouvi vítimas justificarem as humilhações sofridas: “É, todo trabalho tem pressões”. Por favor, não confunda pressão com assédio. Todo trabalho tem alguma pressão, até mesmo quando somos autônomos, porque trabalho exige demandas. Isso é totalmente normal. “Relatório tem que estar pronto hoje” ou “Temos meia hora para chegar à reunião”, não é algo constrangedor e humilhante. As características principais do assédio são a repetição, a exposição, — principalmente na frente de outras pessoas — o constrangimento, ou seja, situações que deixam as vítimas psicologicamente fragilizadas. O que se assemelha a prática do bullying, que ocorre principalmente entre crianças e adolescentes. Os maiores causadores, são os pais — o que deveria ao longe, ser o mais improvável — os patrões, ou alguém que recebe algum “poder” sobre nós, como líderes, gerentes e até mesmo familiares que nos oferecem algum favor. Ou ainda, pessoas mal-intencionadas que praticam o assédio por prazer. Dificilmente, vem de alguém a quem não estamos expostos de alguma forma.

Não ande de mãos dadas com o assédio. Entrar na roda dos assediadores, pode ser em algum momento, inevitável, e você tem o poder de evitar que essa repetição continue. Faça constantes visitas ao seu ser, e constate, o que está lhe fazendo mal. Não hesite em cortar laços com o que está lhe causando danos, e se necessário, procure ajuda psicológica — que é o mais indicado — ou converse com alguém em quem possa confiar. Alguém, com quem possa expor exatamente como se sente. Outra coisa importante, os assediadores, são pessoas infelizes. Por mais que pareçam estar por cima, como a inesquecível Miranda Priestly de O diabo veste Prada (personagem de Meryl Streep), estão em constante conflito consigo mesmo, mantendo aparências a qualquer custo, e dificilmente se retratarão com suas vítimas. Não espere desculpas. Por isso é tão importante que você corte laços com a maldade, principalmente nos começos, e proteja sua mente, mesmo que você perca algo que considera necessário. O que você precisa, é de respeito. A vida não é aquela novela mexicana, que a personagem pobre e humilhada, descobre que é dona de uma herança pomposa, e resolve usar a fortuna para humilhar os vilões. Não deseje imitar àquilo que lhe danificou. Apenas se desligue. Não vale a pena sair de oprimido à opressor. Finalizo com a famosa frase, que circula na internet, de um autor desconhecido: “Você não pode se curar no mesmo ambiente em que adoeceu”.

Marcos de Sá nasceu em Fortaleza, em 1986. Educador social e idealizador de projetos voltados à leitura, como o “Periferia que lê”, “Leitor Book Brasil” e “Prêmio Book Brasil”, Marcos é também escritor de romance contemporâneo e articulista de educação e cultura no Centro Cultural Ibeu. Seus livros de lançamento são “Reciclável — Acomode-se ou Recicle-se” e “O Baú de Shailo”. Também escreveu um livro infantil intitulado “Rotulândia”.

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Educação, cultura e arte. Uma publicação do Centro Cultural Ibeu (RJ, Brasil)