Quando nossas raízes sufocam outros crescimentos | Por: Marcos de Sá

Centro Cultural Ibeu
5 min readDec 11, 2021
Cena do filme “Nas profundezas do mar sem fim” (The Deep End of the Ocean), de Ulu Grosbard (1999)

Grande parte das nossas debilidades, que afetam direta ou indiretamente outras pessoas, quando não são reconhecidas por nós mesmos, nunca poderão ser tratadas e os relacionamentos permanecerão adoecidos. Costumo dizer que o pior defeito que um ser humano pode ter, é o de não se reconhecer. Esse reconhecimento não se trata de um autoflagelamento ou autocomiseração, e sim, da análise geral dos conflitos levando em conta que a outra pessoa também possui erros e acertos, mesmo quando os erros parecem se sobressaírem.

Quando um diabético nega que tem diabetes ou uma pessoa com pressão alta recusa-se a tirar as férias orientadas pelo médico, ela está impedindo o tratamento de sua saúde. É a mesma coisa que acontece com os relacionamentos: alguma coisa não está sendo tratada, mas essa cura depende de algo que só um reconhecimento pessoal poderia dar início à resolução.

As primeiras raízes

As nossas primeiras raízes são fincadas na família. É dela que vem nossas primeiras ramificações e as bases de uma saúde emocional equilibrada, ou não. Quando esse primeiro contato com a vida é adoecido, muitas coisas tendem a ficar doentes, tanto no convívio com os tais como em outros relacionamentos. Filhos de pais abusivos, agressivos, narcisistas ou ausentes, têm grandes probabilidades de crescerem frustrados e experimentarem um futuro de amarguras.

Recordo uma cena do filme “Nas profundezas do mar sem fim” com a atriz Michelle Pfeiffer, em que ela protagonizando a mãe, visita um de seus filhos adolescente que acabara de ser preso, e revoltada com aquela situação o questiona “o porquê?”. O silêncio do garoto é devastador. Se ela reconhecesse que a sua ausência como mãe foi um dos fatores agravantes para aquela situação, talvez ele conseguisse dizer: “Olha, você passou anos procurando meu irmão desaparecido e esqueceu do filho que estava ao seu lado, em casa. Você descarregou em mim toda sua frustração e amargura, e hoje eu me sinto um lixo”. E por mais que pareça incomum, por se tratar de uma ficção, é isso que acontece em lares onde não há equilíbrio de ambas as partes.

Conheço pais que descarregam suas revoltas em seus filhos, seja por um casamento fracassado ou por não estarem preparados para assumirem a responsabilidade da paternidade. É corriqueiro, presenciar filhos que crescem sem a chance de se expressarem, porque o regime na casa é fechado. “Engole o choro se não apanha”, “Não me confronte porque sou a sua mãe” ou simplesmente são levados a punições por tentarem expressar seus sentimentos. Isso não justifica os casos de rebeldia ou falta de respeito, mas até essas questões precisam ser levadas em conta, pois podem proceder de alguma raiz familiar. Esses relacionamentos abusivos não se limitam apenas à infância, existem adultos que ainda vivem sob esse jugo. Pais que não reconhecem suas falhas e não procuram tratá-las, enxertarão em seus filhos o peso de suas feridas abertas.

É possível que muitas pessoas transfiram o que aprenderam. Os nossos pais podem estar emitindo o que os pais deles fizeram. Por um lado, dependendo de cada situação, precisamos entendê-los. Não é fácil para todo mundo. E como filhos, temos a oportunidade de lutar por laços de amor e por fim quebrar esse ciclo, caso ninguém nunca tenha feito. Até mesmo porque muitos serão pais, e se não tratam essa “doença”, alimentarão novos ciclos de abuso.

Reconhecer-se é necessário.

O orgulho

Segundo as narrativas bíblicas, o que originou todas as debilidades humanas foi o orgulho. Quando o Arcanjo Lúcifer teria se rebelado contra Deus, e desejou assentar-se em seu trono com o sentimento de ser absoluto. Independente, se você acredita ou não, o fato é que o orgulho deve mesmo ser a pior debilidade de alguém. Porque o orgulho impede que reconheçamos o que precisa ser tratado e o quanto somos relativos. Um assassino pode reconhecer seu erro e se arrepender, mesmo que seja tarde demais para isso. Um orgulhoso jamais se dobra diante de nada. A sua ideologia está acima do bem e do mal, ou simplesmente da paz nos seus relacionamentos. Ele não cede, não retrocede, não apazigua, não reconhece. E pior do que a escolha de viver enganando a si mesmo, é afetar filhos, funcionários, amigos, cônjuge, e todos que passam pelo seu caminho.

Não pode existir nada pior que conviver com alguém a qual desejamos manter distância. O orgulhoso não ouve, e quando finge ouvir, passa a tratar seus supostos confrontadores como inimigos mortais. Eles não suportam ouvir frases do tipo: “Você está enganado!” ou “Quero que você respeite a minha maneira de viver, que é diferente da sua!”. Geralmente, são movidos por ideologias inquebráveis, e quando dizem que “bijuteria é ouro”, não há ninguém que os convença o contrário.

Arrancando as raízes

Cada caso é um caso. Não existe uma solução “X” que se aplique a todas as situações. O primeiro passo é reconhecer a si mesmo. Conheço jovens e adultos que reclamam da convivência com seus pais, mas eles nunca fizeram nada para cessar aquela situação, como sair da aba deles. Reconheça: “Enquanto eu estiver com eles, é possível que isso não acabe!”, que tal planejar seu próprio lar? Em histórias de conflitos entre duas ou mais pessoas, sempre procure entender os dois lados, porque é possível que alguém esteja o enraizando com mentiras, principalmente se essas partem de pessoas orgulhosas. Já perdi a conta de quantas relações foram arruinadas por palavras mal contadas.

Segundo, não romantize o abuso. O amor primário na vida de uma pessoa, na maioria das vezes é o materno. E se por algum motivo, essa relação se torna destrutiva, nem mesmo assim a romantize. Abuso não é bonito para ninguém, e muito menos entre pais e filhos, que deve ser a relação mais honesta e forte na vida das pessoas. Com os demais, nem é preciso dizer. Usei a figura da mãe como o máximo do amor, mas se esse máximo falhar, não hesite em buscar seu equilíbrio emocional, sem culpas. Erros e debilidades, todos têm. Eles podem nos afetar como pessoas, mas acredite, não existe algo mais maléfico do que adoecer outras pessoas por coisas que resistimos à reconhecer e a tratar em nós. A saúde nas relações começa quando pensamos “Eu exagerei naquele áudio, não precisava de tudo aquilo”, “Preciso de ajuda, não sei lidar com essas emoções”, ou “Me desculpe, sei que não tenho conseguido agir como deveria, e reconheço que isso feriu você”.

Tudo que falamos, escrevemos ou fazemos tem duas maneiras opostas de alcançar os outros. Nem sempre é fácil, mas se escolhermos a maneira do amor, ou seja, deixar o amor falar por nós, mesmo quando a raiva prevalece, conseguiremos transmitir e resolver muitas questões, como deve ser.

Marcos de Sá nasceu em Fortaleza, em 1986. Educador social e idealizador de projetos voltados à leitura, como o “Periferia que lê”, “Leitor Book Brasil” e “Prêmio Book Brasil”, Marcos é também escritor de romance contemporâneo e articulista de educação e cultura no Centro Cultural Ibeu. Seus livros de lançamento são “Reciclável — Acomode-se ou Recicle-se” e “O Baú de Shailo”. Também escreveu um livro infantil intitulado “Rotulândia”.

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Educação, cultura e arte. Uma publicação do Centro Cultural Ibeu (RJ, Brasil)