De onde vem a sua insatisfação? | Por: Marcos de Sá

Centro Cultural Ibeu
5 min readMar 21, 2022

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Cena do filme “De repente 30”

Assistir filmes sobre regressão no tempo como “De repente 30” ou a série brasileira lançada recentemente “De volta aos 15”, geralmente nos faz refletir sobre uma pergunta que vez ou outra está diante de nós: e se pudéssemos voltar? No filme conhecemos Jenna Rink que aos treze anos deseja chegar logo ao seu futuro, revelando o desejo de uma adolescente pela sonhada liberdade que a vida adulta parece ofertar, e quando então realiza sua vontade descobre a frustração buscando o retorno. Já a série nos apresenta Anita, uma mulher de trinta anos que descobre uma maneira de voltar aos quinze, e isso acontece várias vezes, e quando retorna a vida adulta percebe que uma escolha do passado alterou algo no seu novo presente que vai mudando a cada ida e vinda. Ambas nos revelam um sentimento em comum: a insatisfação.

Nesse momento existe um milionário reclamando com a empregada que a comida está salgada mandando que ela a retire da mesa. Tem alguém olhando as fotos da amiga assalariada viajando em Paris e se perguntando: “Como pode? Eu trabalho tanto e não consigo nem um pic-nic fretado em grupo. Só pode estar roubando”. Tem gente comprando automação nas redes sociais para chegar a um milhão de seguidores e não importa se esses não são orgânicos. A insatisfação está por toda parte, seja ela justa ou não, e se insere independente de classe social, cor, raça, gênero, religião, visão política causando baixo autoestima, incoerência, cansaço mental, discussões desinteligentes, mágoas quase intratáveis, depressão, frustrações megalomaníacas, e o desejo vão em pensar que poderia fazer tudo diferente se pudesse voltar. E, digo “vão” por sabermos que não podemos voltar por mais que a ficção nos ofereça isso como entretenimento.

Por que estamos insatisfeitos? Essa não é uma questão inútil que pode se desfazer imaginando que milhares de pessoas estão morrendo de fome, sede e falta de assistência medica na Somália ou pensando nas famílias que perderam seus entes queridos no desastre em Petrópolis. Sim, saber que existem pessoas com problemas muito maiores que os nossos pode nos ajudar a refletir sobre a insignificância de algumas reclamações corriqueiras como a toalha molhada que o cônjuge costuma deixar sobre a cama ou o boleto que está para se vencer roubando o seu sono. São problemas? São sim, e eu sei bem como é. Eu aposto com você como as pessoas mais bilhardarias do planeta estão insatisfeitas com alguma coisa, talvez porque perderam seis milhões dentre os trezentos bilhões ou porque o jatinho para Maldivas está atrasado, Que coisa não!? E se pensarmos por este lado, aliás somos humanos, quando não estaremos insatisfeitos? Que dia é esse que nunca chega onde seremos satisfeitos para sempre? Ou sempre é muito?

Não pense que isso é um julgamento porque eu também estou insatisfeito com muitas coisas. Todos os dias acordamos com alguma notícia que nos afeta, seja do vizinho, da tia do WhatsApp, na TV ou na internet, o mundo não é justo, e muita gente está insatisfeita com isso. A insatisfação às vezes serve para gerar modificações, aliás as grandes mudanças que surgiram no mundo e em nossas vidas não foram impulsionadas por uma insatisfação? Ex-viciados fundam casas de recuperação; as periferias formam associações e grupos artísticos por moradores da comunidade; grupos realizam ações sociais como entrega de sopas, roupas e calçados; adolescentes fundam bibliotecas comunitárias em sua própria casa, como a Lua Oliveira de 14 anos, moradora da Ladeira dos Tabajaras em Copacabana/RJ; mulheres abandonam uma vida de violência causada por seus ex-parceiros; jovens marginalizados adentram nas faculdades por mérito próprio, e assim, essa dor necessária produzida pela insatisfação pode nos aprisionar ou nos libertar. Depende da resposta que cada pessoa dá a ela.

Nunca poderemos regressar ao passado de forma consciente para repararmos o que hoje é o motivo das nossas insatisfações. Certamente, se pudéssemos voltar evitaríamos sim, algumas coisas, e hoje teríamos outros motivos porque é inevitável.

Em setembro de 2021 estive treze dias internado em um hospital, imóvel, cheio de demandas para dar prosseguimento, principalmente questões de trabalho e insatisfeito com aquela situação não me restava nada a não ser pensar que minha saúde era o bem maior que eu possuía. Lembrei do caos que estava vivendo antes daquela situação-limite, das coisas que estava dando importância e sabia que essa reflexão só havia chegado porque fui “forçado” a desacelerar. Hoje, com saúde para comer três BIG MAC (apesar de não ser nada saudável) costumo refletir sobre o que está me deixando insatisfeito e se essa inquietação produz o que me paralisa ou o que me impulsiona. Aprendi, estando de pé, a questionar e a duvidar da dúvida.

Que a sua insatisfação seja o buraco debaixo do sapato que te faz reconhecer a necessidade de um novo, e não aquela que te posiciona no lugar de um coitado que nunca recebe um sapato de presente ou até mesmo que acha não ser merecedor. Faça algo, ande descalço por um tempo se necessário.

Não se pode pular para o futuro ou consertar o passado, e eu sei que isso soa clichê porque você já ouviu isso trocentas vezes em filmes, em livros de autoajuda, ou da sua melhor amiga. Então, vou te lançar um desafio imaginário: pensa no filme da sua vida e imagina que você está no futuro, quinze anos a frente, e você encontrou um espelho mágico que te trouxe há quinze anos de volta, e esse momento é agora. O que você precisa fazer hoje para não frustrar a pessoa que está quinze anos a frente? Essa pessoa é você. E o dia é hoje. Pode não está sendo um momento legal, mas é hoje. Satisfação!

Marcos de Sá nasceu em Fortaleza, em 1986. Educador social e idealizador de projetos voltados à leitura, como o “Periferia que lê”, “Leitor Book Brasil” e “Prêmio Book Brasil”, Marcos é também escritor de romance contemporâneo e articulista de educação e cultura no Centro Cultural Ibeu. Seus livros de lançamento são “Reciclável — Acomode-se ou Recicle-se” e “O Baú de Shailo”. Também escreveu um livro infantil intitulado “Rotulândia”.

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Educação, cultura e arte. Uma publicação do Centro Cultural Ibeu (RJ, Brasil)