A vitrine não foi feita para favelados | Por: Marcos de Sá

Centro Cultural Ibeu
6 min readJan 19, 2022

--

Todos os dias ouvimos falar na tal de desigualdade social, ela é real, está no prato vazio, na casa inundada, erguida na pedra de algum morro, no telhado de plástico e na inércia das bibliotecas públicas. Seria redundante falar mais uma vez aquilo que é sabido, porém ignorado. Quando visitei a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em janeiro de 2020, senti ânsias e profunda angústia ao ouvir a guia narrar sobre como as pessoas foram expulsas daquele lugar, ali mesmo ao redor da biblioteca a menos de um século, e de como começou a nascer as primeiras favelas em sua grande maioria nos morros.

Não é novidade em que as maiores periferias são socialmente afetadas por dois extremos: a invisibilização e a rotulação. Apesar de serem praticamente antônimos, caminham juntos. É como se fosse comum aceitar que não somos capazes de ocupar espaços de poder por mérito. Os programas policiais e as grandes mídias nos apresentam como lugares propícios à violência, miséria e desestruturas, indo de ruas esburacadas à jovens na criminalidade. Esses programas são geralmente exibidos em horário de almoço ou chá da tarde enquanto degustam uma bela coxa de frango ou um crème brulée, e a exposição recorrente das desigualdades sociais e suas consequências estão sempre em alta no ibope. Parece ser os únicos destaques em que os favelados, dos quais me incluo, não são invisibilizados.

Antes de publicar meu primeiro livro, costumava frequentar eventos literários que em sua grande maioria, ouso dizer que em 98%, estavam bem distantes da minha favela, e de muitas outras. Mesmo sendo realizados nos melhores centros da cidade, gostava de ir aos lançamentos e palestras, e até levava algum dinheiro para adquirir um livro, e saía pensando na exploração do valor cobrado nas obras “dava para comprar uma cesta básica”, era o remorso de quem nunca tinha dinheiro sobrando para comprar um livro com placidez. Não que eu ache imprudente comercializar um produto, livro, pelo valor que resolveram dar a ele, sou daquela filosofia que as pessoas pagam sessenta reais num batom ou numa pizza, e por que não um livro que pode ter um conteúdo imensurável? Mas para um favelado o batom, a pizza e o livro são equivalentes a uns três dias de comida no prato.

O que passou a me incomodar foi o porquê de não ver aqueles movimentos nas periferias. Por que não acontecia lançamentos lá? Por que não tinha aquelas salas com ar condicionado lá? Por que não tinha quase nada motivacional na linguagem da literatura por perto? Talvez o motivo fosse o que todo mundo já sabia: na favela as pessoas escolheriam uma cesta básica em vez de um livro. E daí? Isso não vai quebrar nunca?

Toda linguagem que está inserida em um artista periférico e precisa ganhar a forma, seja música, dança, circo, teatro, literatura, vem de um desejo genuíno de exercer o que lhe é despertado naturalmente, como qualquer pessoa que sonha, idealiza e quer ocupar as vitrines disponíveis, e aí vem a realidade: a vitrine não foi feita para nós.

Hoje, entramos em uma livraria e encontramos uma Conceição Evaristo e um Jeferson Tenório, entre alguns que, tem notoriedade, mas com quanto tempo e com que naturalidade isso aconteceu? E não me refiro apenas à escritores negros que narram as injustiças e desigualdades sofridas nas favelas, mas tente lembrar um nome de uma dessas personalidades que ocupam as vitrines de destaques com livros de fantasia, romance contemporâneo, autobiográfico, quadrinhos, suspense ou poesias? Agora resgate da memória quantos artistas que não são favelados e ocupam estes lugares? Percebe a diferença?

No trabalho com um grupo de escritores da minha comunidade, o qual lidero, faço questão entre uma fala e outra de enfatizar essa realidade “Eles não vão fazer nada por vocês. Ninguém vai responder o e-mail do seu original. O jornalista de uma grande mídia não vai falar do seu livro porque você o presenteou com uma unidade, no máximo vai achar que é apenas mais um interesseiro. O destaque que desejam nos dar é outro. A vitrine não foi feita para favelados”. Isso parece duro, injusto e pessimista, e eu concordo. Não era pra ser assim, mas é. Precisamos nos tornar a nossa própria vitrine, uma que não se quebre e não seja saqueada. Essa é a regra para resistir.

O trabalho realizado por conta própria é outro desafio, se no contexto o qual está inserido é predominante a ausência de incentivos e motivações, como a prática da leitura por exemplo, como vender a sua obra e viver dela? Compartilho isso por experiência, venho de uma família escassa de qualquer linguagem artística e estruturalmente desinteressados pelas tais. Costumo dizer que sou o E.T da linhagem. E como fidelizar um público à sua arte? É isso mesmo! Construindo e reconstruindo com sangue nos zói. Outro dia me deparei com minha mãe deitada na rede lendo o meu livro, imagem que nunca vou esquecer, pois nunca havia a visto com um livro em mãos. Trabalhar com arte e cultura, principalmente nesses tempos, não é uma tarefa simples. Imagine sendo um artista da favela!

As pessoas já devem estar fadadas aos posts de criadores na internet fazendo campanhas, como “apoie os artistas nacionais”, “ajude a arte do seu amigo, que ainda é anônimo”, “consuma os livros, filmes e séries de profissionais brasileiros” e “parem de supervalorizar as coisas de fora”, e isso é geral. E eu desejo acrescentar “Fortaleça o trabalho artístico da sua amiga favelada. Compre um produto do seu amigo periférico que está sendo constantemente divulgado por ele. Não ignore os de perto e nem espere ver eles em alguma vitrine para então apoiá-los. Faça agora parte da trajetória que está sendo construída sem nenhuma porta aberta de boas-vindas”.

O destaque da vitrine só existe porque foi romantizado como um lugar de valor, e quem pode, paga por ele. O valor que nós damos as pessoas e as coisas estão arraigados naquilo que acreditamos. Nem tudo que nos fazem acreditar tem valor, como por exemplo, que a favela é lugar de gente ignorante e incapaz de produzir boa arte ou de ocupar espaços de destaque. E quando ver um bom destaque, fruto da favela, acredite: tem muita história ali para se resumir em apenas um suposto privilégio. Os de perto costumam gritar “A favela venceu”, e se venceu é porque lutou.

Marcos de Sá nasceu em Fortaleza, em 1986. Educador social e idealizador de projetos voltados à leitura, como o “Periferia que lê”, “Leitor Book Brasil” e “Prêmio Book Brasil”, Marcos é também escritor de romance contemporâneo e articulista de educação e cultura no Centro Cultural Ibeu. Seus livros de lançamento são “Reciclável — Acomode-se ou Recicle-se” e “O Baú de Shailo”. Também escreveu um livro infantil intitulado “Rotulândia”.

--

--

Centro Cultural Ibeu

Educação, cultura e arte. Uma publicação do Centro Cultural Ibeu (RJ, Brasil)