A polissemia e a ambiguidade das nossas relações | Por: Marcos de Sá
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Aconteceu um fato não tão inusitado comigo nesse final de ano, e foi resolvido a tempo. O corretor do celular decidiu que a felicitação a um parceiro de trabalho chegasse da seguinte maneira “tenha um final de rabo maravilhoso”, quando o coração e o dedo intencionaram digitar “ano”. Apesar da generosidade no tratamento de ambos, não havia intimidade suficiente para uma suposta brincadeira e acredito que ele deva ter discernido o erro de digitação ainda que não fosse reparado.
Resgatei da memória, quando o WhatsApp não estava em alta, sobre uma relação rompida sem aviso prévio após uma troca de mensagens por SMS em que digitei a um amigo extremamente hétero “Você é mais que um amigo, é irmão”. Quem costumava se comunicar dessa maneira na época deve recordar que ela adorava comer os acentos e a mensagem chegou “Voce e mais que um amigo, e irmao”. Nesse caso não houve uma retratação e nem o notei depois, soube do mal entendido por outra pessoa quando não havia mais o desejo de repará-lo. Não éramos mais amigos e muito menos irmãos.
Na gramática aprendemos sobre a polissemia e a ambiguidade. A palavra “cobra” é polissêmica pela variedade de significados que pode carregar. Na frase “A cachorra da tia não deixou ninguém entrar” nos permite questionar se a mulher está sendo ofendida ou se realmente possuía uma cadela raivosa, e trata-se de uma ambiguidade. E o que isso tem a ver com as nossas relações? Será que estamos nos tornando polissêmicos ou ambíguos?
A ansiedade gerada pelas cobranças cotidianas faz com que os nossos dedos rolem tela acima, e os nossos sentidos sejam aguçados por legendas chamativas. Recentemente li o título de um post jornalístico que me fez dar risadas, era algo do tipo “Homem pula em lago para fugir de abelhas e é atacado por piranhas”, me veio uma cena do desenho Pica-Pau, pois vejam que cômico, o cara consegue sobreviver a um enxame e logo dá de cara com dentes afiados. Automaticamente concluí “É meu amigo, não era o seu dia de sorte”. Ao comentar com alguém sobre o ocorrido, soube o que a legenda não explicitava: ele havia morrido. Não havia nada de engraçado.
Antes dos anos 2000, as pessoas costumavam romper ou reatar relações por ligação telefônica, carta ou pessoalmente. Hoje, apenas seguem ou deixam de seguir uma à outra no Instagram. Outro dia soube que alguém estava chateado comigo porque “deixei de ser amigo no Facebook”, quando na verdade eu havia o desativado e feito um outro perfil sem enviar um novo convite à pessoa em questão. E é quase fatal visualizar uma mensagem no WhatsApp e não responder na mesma hora. E é nisso que estão fundamentados um “bom relacionamento” nos dias atuais. Somos bombardeados por frases psicológicas e filosóficas, em sua grande maioria, usadas como indiretas por quem não superou suas questões pessoais em uma cultura de arrogância e soberba exposta “Não gosto de todo mundo, não gosto de quem gosta de todo mundo”. Somos autossuficientes, e se alguém vacila, cancelamos e seguimos em frente. E mesmo diante de múltiplas informações sobre como as novas tecnologias afetam de maneira negativa as nossas relações humanas, continuamos com um celular na mão sem a mínima intenção de repensar nossa maneira de viver e conviver.
Um dos filmes mais comentados do momento, Não olhe para cima, lançado pela Netflix retrata em algumas cenas essa realidade que nos leva a refletir sobre o que estamos observando com atenção porque é justamente isso que nos move, comove e às vezes remove. Remove a nossa criticidade sobre nós mesmos, sobre nossas ações, sobre quem somos e como conceituamos os outros. Diante um cometa devastador, que pode representar aquilo que ameaça o nosso adequado equilíbrio, para onde estamos focando? Como permitimos que coisas relativas sobressaiam as absolutas?
Se alguém nos questiona sobre o que é o amor ou a aceitação, certamente obterá uma pluralidade de respostas e conceitos baseados naquilo que observamos e absorvemos. O que determina não é o dicionário, e sim o significado pessoal que damos às palavras. E o significado do outro nunca será o nosso, mesmo diante de muitas concordâncias, pois ele tem um dicionário próprio que também é ressignificado.
Após esse post, possivelmente, continuaremos conferindo apenas as legendas, acreditando nas margens e ignorando os profundos, e acolhendo as nossas impressões de como as coisas se apresentam a nós (desejo estar enganado). Lembremos da “síndrome de Bentinho” (protagonista de Dom Casmurro, Machado de Assis) que defendeu sua tese até o fim, e conviveu com a culpa de nunca saber se foi justo ou injusto com as pessoas que mais lhe demonstraram uma sincera afetividade.
Que possamos aprender a duvidar das dúvidas, e repensar os significados que estão ou não estão em nós.
Marcos de Sá
Marcos de Sá nasceu em Fortaleza, em 1986. Educador social eidealizador de projetos voltados à leitura, como o “Periferia que lê”, “Leitor Book Brasil” e “Prêmio Book Brasil”, Marcos é também escritor de romance contemporâneo e articulista de educação e cultura no Centro Cultural Ibeu. Seus livros de lançamento são “Reciclável — Acomode-se ou Recicle-se” e “O Baú de Shailo”. Também escreveu um livro infantil intitulado “Rotulândia”.